Amor idealizado e solidão: quando a perfeição vira prisão

Palavras como amor, desejo e liberdade nos seduzem. Mas o que acontece quando o amor se confunde com exigência, o desejo é sempre do outro e a liberdade é apenas aparência? Em tempos de relações moldadas por expectativas, o amor idealizado pode se tornar a via mais rápida para a solidão.


O que é amor idealizado?

Amor idealizado é aquele que nasce de uma imagem — uma fantasia de completude, de perfeição, de encaixe absoluto com o outro. É o tipo de amor que não acolhe o real, mas sim uma projeção sobre o outro e sobre si mesmo. No campo psicanalítico, esse amor está intimamente ligado ao desejo do Outro, às faltas constitutivas do sujeito e à dificuldade de lidar com a imperfeição.

No livro A gente mira no amor e acerta na solidão (link para a compra com desconto), Ana Suy nos convida a olhar de forma honesta para essas construções. Ela escreve que muitas vezes o que chamamos de amor é, na verdade, uma tentativa de preencher o vazio que habita todos nós — e que, ao fazer isso, transformamos o outro em objeto. Amar, nessa lógica, não é permitir a alteridade, mas domesticar o imprevisível.

É nesse contexto que o filme Cisne Negro, de Darren Aronofsky, se insinua como metáfora potente. Ele não precisa ser revisto como resenha. Basta observá-lo como símbolo: uma jovem que tenta encarnar o ideal (cisne branco), mas é atravessada pelo que escapa, pelo que é excesso (cisne negro). A tensão entre esses polos — controle e pulsão — é o pano de fundo da nossa análise.


Amor e projeção: a mãe que idealiza, a filha que adoece

A relação entre Nina e sua mãe em Cisne Negro é um exemplo contundente de amor projetivo. A mãe diz amar, mas esse amor está preso à idealização de uma filha perfeita. Como analisa Donald Winnicott, o desenvolvimento saudável de um sujeito depende de uma “mãe suficientemente boa” — aquela que oferece cuidado sem impedir a individualidade do filho.

No caso de Nina, a mãe é intrusiva, simbiótica, não reconhece os limites entre si e a filha. O resultado disso, segundo Winnicott, é a formação de um falso self: uma identidade moldada para atender à expectativa do outro, ao custo da própria subjetividade.

Esse amor, apesar de parecer proteção, é forma de controle. O que deveria ser um espaço de acolhimento se torna um ambiente de sufocamento. Ana Suy, ao refletir sobre o amor materno, escreve:

“É possível amar e, ao mesmo tempo, não permitir que o outro exista.”

É essa forma de amor que conduz o sujeito à solidão. Porque não há reconhecimento do que ele é — apenas daquilo que deve ser.


O desejo do Outro: quando amamos para sermos amados

Jacques Lacan nos oferece uma chave essencial: o desejo humano é sempre desejo do Outro. Desde pequenos, desejamos ser o que o outro deseja que sejamos. Assim se constrói a identidade — pelo olhar, pela palavra, pela expectativa alheia.

No caso de Nina, sua identidade está fundada nesse desejo do Outro. Ela dança não por prazer, mas para ser aceita. Busca não sua própria realização, mas a validação do diretor da companhia, da mãe, do público. E, como observa Lacan, quanto mais buscamos ser o objeto do desejo do outro, mais nos afastamos de nós mesmos.

Essa alienação gera sofrimento. Ana Suy traduz bem isso ao afirmar que o amor idealizado não abre espaço para o sujeito:

“Na tentativa de corresponder, muitas vezes deixamos de existir.”

E o que sobra quando não existimos de fato? A solidão.


O corpo como campo de exigência: beleza, controle e colapso

O corpo de Nina é outro território onde se desenha o amor idealizado. Ele deve ser leve, dócil, técnico. Mas também deve ser sedutor, potente, descontrolado. A performance do cisne branco exige pureza; a do cisne negro, entrega. Como conciliar esses extremos?

No silêncio do palco vazio, apenas as marcas da entrega permanecem — sapatilhas gastas, sombras de cisne e a solidão do ideal.

O colapso de Nina ocorre justamente quando o corpo deixa de obedecer. Feridas, alucinações, perda de controle. Tudo isso revela o preço da exigência contínua. Silvia Bleichmar, psicanalista argentina, trabalha o conceito de “vazio constitutivo” — aquilo que nos habita desde sempre, e que só se torna suportável quando somos reconhecidos como sujeitos.

Nina não é reconhecida. É um corpo moldado, observado, exigido. Seu vazio não encontra acolhimento. E quando o corpo grita, já é tarde.


Amor como liberdade: o que diria Bell Hooks?

Bell Hooks, em Tudo sobre o amor (link para a compra com desconto), propõe um caminho radicalmente diferente: o amor como prática da liberdade. Para ela, amar é permitir que o outro exista plenamente, sem moldá-lo à nossa imagem. O amor verdadeiro envolve responsabilidade, cuidado e, sobretudo, respeito pela alteridade.

Hooks critica as formas de “amor” que controlam, punem, exigem. No universo simbólico de Cisne Negro, o amor da mãe por Nina é exatamente esse: controlador. Não há espaço para que Nina seja múltipla, complexa, errante. E é por isso que esse amor fracassa — porque mira no ideal e esquece o real.

Essa crítica ecoa também em Ana Suy, que alerta: o amor que idealiza tende a se tornar uma prisão.

“Quando o outro não pode ser diferente da imagem que criei, já não é mais o outro que amo — é apenas minha projeção.”


Simone de Beauvoir e o feminino idealizado

Para Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo (link para a compra com desconto), a mulher é construída socialmente como o “Outro” do homem — aquela que deve agradar, ceder, ser desejável. Essa lógica se traduz em inúmeros papéis sociais, inclusive na arte.

Nina encarna esse ideal feminino: bela, submissa, contida. Mas o papel do cisne negro exige outra coisa: autonomia, potência, sexualidade. E é aí que o conflito se intensifica. Não por acaso, a sexualidade de Nina é reprimida — pela mãe, pelo medo, pela própria imagem de pureza que tenta sustentar.

Ao tentar ser múltipla, ela rompe com o ideal. E, ao romper, enlouquece. Beauvoir já alertava:

“Não se nasce mulher: torna-se.”

E tornar-se exige luta. Contra o olhar do outro, contra os papéis impostos, contra a solidão de não caber em nenhuma imagem.


O amor que não se sustenta: entre o ideal e o real

Ana Suy insiste: o amor verdadeiro só é possível quando permitimos ao outro existir fora do ideal. E isso implica aceitar a frustração, o diferente, o imprevisto. No caso de Nina, o amor da mãe, do diretor e até dela consigo mesma, não suporta o real. Quando o desejo escapa da moldura, tudo desaba.

E talvez isso diga mais sobre nós do que imaginamos:

  • Será que amamos a pessoa real ou apenas a ideia que criamos dela?
  • Em nome da aceitação, quantas vezes nos prendemos à ilusão da perfeição?
  • Até que ponto chamamos de amor aquilo que, na verdade, é pura exigência?

No fim, quando miramos no amor idealizado, é comum acertarmos na solidão — não por falta de companhia, mas por ausência de reconhecimento. Como diz Ana Suy, a solidão de quem é amado apenas como projeção é mais profunda do que estar sozinho.


Amor idealizado e solidão: um problema da nossa época?

Num mundo onde as relações são cada vez mais mediadas por imagens, expectativas e performances (nas redes, no trabalho, na família), o amor idealizado se tornou quase uma norma. Esperamos do outro completude, segurança, sentido. Mas esquecemos que o outro também é falta, também é limite, também é caos.

Nesse cenário, a solidão aparece não como ausência de vínculos, mas como excesso de exigência. Estamos cercados de pessoas, mas poucas vezes somos vistos de verdade. E isso vale para relações amorosas, familiares, profissionais.

Como romper esse ciclo?

Talvez o primeiro passo seja reconhecer que o amor não preenche. Ele atravessa, toca, desloca. Mas não completa. Completar-se é uma ilusão perigosa — que muitas vezes leva ao colapso, como em Cisne Negro.


Conclusão: amar é permitir o outro ser

Ao longo deste texto, vimos como o amor idealizado pode se tornar um caminho direto para a solidão. Quando o amor se apoia apenas na projeção, na exigência e na fantasia, ele nega o outro — e também nos nega como sujeitos.

Através das lentes de Ana Suy, Winnicott, Lacan, Bleichmar, Bell Hooks e Simone de Beauvoir, entendemos que amar de verdade exige risco. Exige aceitar que o outro não é nossa continuação. Que o desejo é falta, e que isso não é um problema, mas condição de existência.

O filme Cisne Negro, em sua potência simbólica, nos mostra o que acontece quando o amor se confunde com perfeição, quando o desejo é sempre do outro e quando a liberdade não é permitida. O resultado é a fragmentação, o colapso, a solidão.

Mas há outro caminho: o amor que acolhe o erro, o excesso, o não ideal. O amor que não aprisiona, mas reconhece. Talvez esse amor seja menos grandioso, menos performático, mas certamente mais humano.

alrsampaio1988@gmail.com

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